Claro-escuro

Antonio Alves

Desde sempre vi com humor e simpatia a velha tese anarquista de que o Estado é um entulho pré-histórico, uma máquina autoritária que só atrapalha a liberdade e o desenvolvimento humano. Mas tenho que ser realista: a superação desse trambolho é coisa para séculos, talvez milênios, e não é certo que a humanidade evoluirá ao ponto de viver como as abelhas, em cooperação organizada e natural. 

Em algumas áreas remotas em que viviam povos considerados primitivos, e mesmo nas bordas camponesas das sociedades modernas, brotaram boas e interessantes experiências de vida comunitária com estruturas de poder mínimas, hierarquia quase nenhuma. Sem leis escritas e nenhum aparato de fazer justiça, conseguiam manter-se em paz -ou, pelo menos, em sossego, que é algo parecido- na maior parte do tempo. Diferentes são os aglomerados urbanos das diversas civilizações, onde a burocracia e a autoridade institucional estabeleceram-se como uma necessidade para que nem tudo fosse permitido e alguma ordem garantisse algum progresso. Nesse mundo, a ausência do Estado, sua fragmentação ou paralisia, é sinal de brutalidade generalizada. Todos contra todos, a estupidez como ética e linguagem.

É mais ou menos assim que estamos hoje, em toda parte, numa barbárie cotidiana que exige um contínuo esforço de adaptação psíquica e física. Em tudo: nas variações bruscas do clima, no ônibus demorado e lotado, no bombardeio de notícias ruins (falsas ou nem tanto), na poluição visual e sonora. Nos atos e ocorrências mais corriqueiros da vida, domina o excesso e a estridência. Por cima e por baixo de tudo, a violência extrema, o crime: devastação descuidada ou intencional da natureza, agressão e assassinato das pessoas.

A sociedade, sem olhar para o sistema interno de agressões que a constitui, proclama-se agredida. Em indignada reação, reformula seus valores a pretexto de restaurá-los. Toma a sombra como luz. A mentira compartilhada mil vezes como verdade. A “segurança” como parâmetro básico da qualidade da vida. No subconsciente, a dança arrítmica do medo com o ódio. O gosto estético indo do vulgar ao macabro. O humor variando entre o deboche e o sarcasmo. E é com essa afetação mental e emocional que a multidão vai às urnas ou delas se abstém, com poucas preferências e muitas rejeições, açulada pelo interesse psicótico dos políticos e pela mediocridade das cabeças-falantes que aparecem nas telas. 

E antes que Zaratustra me repreenda, como fez ao louco na entrada da cidade, digo que não tenho prazer em condenar e que não critico por carência de alguma bajulação que me levasse a elogiar. Mais me agradaria calar-me, esperar, decifrar, na esperança de que as coisas melhorem. Mas o poeta que não sou, ele mesmo diz: “São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto”.

Não sei se me revolto, mas é difícil manter a poesia em meio às mudanças climáticas no planeta e as ocorrências policiais na comunidade. Minha vizinha viu um adolescente apontar-lhe uma escopeta pela janela da casa, tentar arrombar a porta e depois sair atirando quando chegaram os amigos que ela chamou desesperadamente pelo celular. A cem metros da minha casa. No bairro próximo, os assustadores “dois caras numa moto” passaram na rua disparando a esmo, feriram dois jovens que estavam num bar, um morreu e o outro foi levado ao hospital. Os avisos vinham pelo whatsapp: fechem a porta e não saiam à rua, pois existem tiroteios assim em vários bairros. Verdade ou mentira, quem vai arriscar? Quem paga o salário dos criadores de pânico? Quem acredita em alguma autoridade que diga que está tudo sob controle? Quem está escutando um barulho estranho lá fora? Por que o cachorro está latindo? 

O barulho mais irritante é o da política. Governos e oposições vociferam as acusações e defesas com o baixíssimo nível e a superficialidade de sempre. Se ao menos pudesse encontrar, na internet, alguma conversa inteligente…

Mas agora as imagens compartilhadas pelo celular mostram as tropas armadas percorrendo as ruas, pertinho daqui. Os comentários são comemorativos, chegou a lei e a ordem. Não deixo de sentir, também, algum alívio. Afinal, chuviscou no meio da tarde e agora faz um tempo confortável enquanto a vigilância cuida do normal. Vida de gado, música tão antiga quanto minha sensação de incômodo. O Estado é o de antes, coturnos noturnos. Quem for inocente, durma.

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