João Veras
O teatro da possibilidade de um tipo de dramaturgia própria daqui
Hoje, pelo menos três grupos locais de teatro (o Garatuja, o Vivarte e o Visse e Versa), cada um ao seu modo, estão produzindo espetáculos cuja temática diz respeito às mitologias de povos indígenas da região acreana. Essa história tem início nas décadas de 80 e 90 com o grupo, também local, Adsabá. É a expressão artística se relacionando com o mundo ao qual se encontra cultural e politicamente integrado. É um teatro que interpreta ao tempo em que interpela e dialoga com o seu lugar de criação. É, por isto também, uma dramaturgia de composição própria. Podem soar estranhas (posto que óbvias?) estas afirmativas, mas, como entendo, plenamente cabíveis em um contexto de colonização cultural dentro e sob o qual vivemos, apesar de não tão percebida e assim refletida e combatida no meio das artes locais.
De fato, depois da morte, em 1997, de Betho Rocha, somente agora nesta segunda década dos anos 2000 é que a expressão cênica local procura “ocupar” o vazio político-estético deixado pelo Adsabá. Este fato tem um significado importante para a história da nossa jovem dramaturgia, na medida em que procura demonstrar, em certos ângulos, a constituição autoral de um projeto estético e político local, haja vista a efetiva disposição desse teatro em promover – para o espaço público, de forma digna, dialogal e fundado em formas estéticas experienciais – o que tem sido invisibilizado ou visibilizado como objeto subalterno – casos dos conhecimentos, das manifestações estéticas e religiosas, dos relatos e imaginários e também das lutas de resistência de povos indígenas historicamente postos/mantidos nas condições colonizada e racializada, desde sempre.
Nesse sentido, Yunupãni, da Cia. Visse e Versa, segue a pegada do Adsabá – este com os trabalhos sobre mitos Kulinas (em Estórias de Quirá); no mesmo caminho seguem os grupos Garatuja – com a cultura Kaxinaua/Huni Kuin (em A Saga de Yobá e Ikuani) e o Vivarte, com os imaginários e realidades Yawanawas (em Kanarô). Estas experiências dos quatro grupos são tão diversas entre si como são as culturas indígenas sobre as quais os referidos trabalhos baseiam suas concepções cênicas e interpretações do que encontram nos mundos culturais ditos alheios.
Sábado passado saí do teatro de Arena do Sesc pensando sobre isso. Foi quando assisti ao Yunupãni (o último da série dos quatro grupos), obra baseada no livro Isikayawa – o Livro da Cura, do pagé Agostinho Ykamuru e do botânico Alexandre Quinet, que trata dos conhecimentos sobre plantas do povo Huni Kuin do Rio Jordão, no Acre.
Resolvi escrever este texto para redizer isto e mais duas palavrinhas que vou desenvolver na sequência. A primeira é sobre um único aspecto de Yunupãni que me chamou bastante atenção (entre tantos outros). A segunda é sobre o que significa este tipo de teatro, de que estou tratando aqui, para a história e composição, talvez identitária, de um tipo de expressão cênica local, enquanto produto artístico-cultural identificável como, em enfoques determinados, próprio.
Pensando nesse conjunto de experiências cênicas, uma diferença forte me chama atenção. Pensar sobre ela faz parte do exercício que me proponho aqui de apontar elementos que possam justificar o que vou defender na segunda palavrinha. Yunupãni se evidencia por uma estratégia pautada no texto falado, na narrativa oral, consubstanciando-se numa dramaturgia centrada na contação de história. A narradora se impõe física e textualmente no centro do relato. Ela é a voz que conduz e orienta o entendimento do expectador no plano dramático. Sua disposição no espaço teatral é imperiosa e combina com a sua atuação narrativa que orienta todos os passos dos demais elementos cênicos: os atores, a luz, os adereços, a música, que é ao vivo, toda a montagem… sendo ela mesma – a narradora – espaço e objeto de manipulação.
Muito embora, com toda essa expressa onipresença da voz narrativa e também de seu corpo, esta não contracena (olho no olho) com quaisquer destes elementos. Parece, para estes, não existir, sendo, paradoxalmente, a sua existência o que determina a narrativa do começo ao fim. Mas para o público não há como tirar a atenção. Ela se impõe. Ela é guia. Como vejo, é um espetáculo do texto, muito mais do que da imagem, da luz, do som e do movimento. Mesmo estando todos estes elementos presentes no ambiente teatral. É exatamente em que Yunupãni se diferencia das experiências anteriores, nas quais, em regra, é a luz, o corpo do ator e a música os elementos que determinam a narrativa dramatúrgica (quem viu Estórias de Quirá, Ikuani e Kanarô sabe do que estou falando, especialmente os dois primeiros em que a palavra não narra).
São estas escolhas estéticas que, combinadas com outras de naturezas diversas, que irão fazer surgir o esboço, no conjunto, de uma obra teatral acreana (um tipo dela, claro!) que se possa chamar de sua, fundada exatamente numa heterogeneidade dramatúrgica que aposta na narrativa – com as suas várias possibilidades – da mitologia indígena (arma de combate na resistência ontológica) como questão central.
E é aqui que começo a segunda palavrinha para dizer o quanto estas opções fazem com que se creia que estejamos, nós os expectadores, vivenciando, para além de uma experiência estética (e de entretenimento), o testemunho de um processo de construção de uma dramaturgia em seus elementos diversos que se possa afirmar próprios calcados numa postura ética, política e estética, posto que baseada no respeito/solidariedade, na resistência e na sensibilidade/inventividade poética frente à colonização cultural de que as manifestações artísticas locais e os povos indígenas têm sido objeto historicamente. O que pode ensejar um caráter singular a estas práticas teatrais deste lugar, daí se apontar certa dimensão, também identitária (política e cultural), construída pela via do constante movimento/processo estético no qual o jovem teatro acreano revela-se protagonista/criador para afastar-se se da conjuntura coadjuvante (quando muito) comum aos que se reduzem a perseguir a condição de cópia dos cânones da dramaturgia brasilcentrista e norte-eurocentrista, com todo o significado colonizador que esta postura possa representar.